Estado de exceção e reforma política

Fábio Romeu Canton Filho

Não são poucos os que enxergam no Brasil atual um estado de exceção. Discordo, mas temo que caminhemos para tanto. Por ora, os Poderes da República, ao menos formalmente, mostram-se atuantes e independentes, cada qual em sua esfera de ação.

Problemáticas, contudo, são as escorregadelas aqui e ali para o campo alheio e outras atitudes pouco republicanas.

Ética é um conceito relativamente simples, mas simplicidade é um valor que poucos praticam. Não pega bem juiz e denunciado reunirem-se na calada da noite -trata-se de uma constatação simples, que deveria nortear o comportamento eticamente recomendável no caso. Tais casos ocorreriam excepcionalmente? Bem, o advérbio deriva do substantivo “exceção”.

Deixemos de lado o exemplo hipotético acima e partamos para outro. Não é de bom alvitre que procuradores ou juízes desfraldem bandeiras partidárias em redes sociais, nem em qualquer meio, principalmente num momento em que o partidarismo contamina boa parte das relações pessoais e institucionais no país.

Espera-se que não ajam como militantes aqueles que investigam ou julgam militantes. Ocorrem casos desse tipo? Sim, um aqui, outro ali, casos excepcionais (“excepcional”: adjetivo derivado do substantivo “exceção”).

No Estado brasileiro, que não é um estado de exceção, não se denuncia nem se julga a partir de preceitos morais. Claro, aqui prevalece o direito, salvo um ou outro momento em que o acusador não se contém e diz tudo o que pensa do acusado, de suas preferências, seus hábitos, seu linguajar, suas roupas. Excepcionalmente.

No Estado brasileiro, que não é de exceção, vez ou outra prisões preventivas alongam-se até que o réu resolva celebrar acordo de delação -mas esses são casos excepcionais.

Como o Estado brasileiro não é um estado de exceção, aqui não se propõem regressões antidemocráticas, como o fim do habeas corpus ou a aceitação de provas ilícitas nos processos. Claro, exceto quando em nome de uma meta elevada -o combate à corrupção, por exemplo.

Nesse ambiente de tanta excepcionalidade, mas ainda não de um estado de exceção, indaga-se: se foi tão árdua a luta por uma Constituição cidadã, por que tanta gente a ignora?

A partição das atribuições das instituições republicanas, a observância das respectivas esferas de ação dos Poderes, o apego ao conteúdo dos autos de processos, o respeito às prerrogativas da advocacia e a obrigatoriedade da presença do advogado em quaisquer instâncias legais -em contenciosos ou conciliações- não são penduricalhos jurídicos, mas avanços civilizatórios.

Repito o que tenho afirmado com frequência: comete grave erro quem vislumbra vencer a corrupção passando por cima do direito. Quem age assim costuma também ignorar que prejulgamentos morais não servem para embasar denúncias, ao menos nos Estados democráticos.

O bom combate à corrupção (não se pode analisar o Brasil sem falar dela), que levará essa praga definitivamente à lona, terá vez no ringue constitucional. Não há outro caminho.

Em termos práticos, caso a caso, é claro que ações policiais contundentes são fundamentais. Ninguém pede que se acoquem bandidos, muito menos que se relativize o crime: um político popular, se corrupto, é tão corrupto quanto o mais impopular dos políticos corruptos. Já destruir a corrupção em seu nascedouro exige um pouco mais de sutileza. A fonte originária deste mar de propinas em que o Brasil se afoga é o relacionamento entre políticos e seus financiadores eleitorais, é a existência de partidos de aluguel, é o notável desprezo com que os administradores públicos olham para a Lei de Licitações.

Não, não vivemos em um estado de exceção, mas em um Estado recheado de excepcionalidades, o que é quase a mesma coisa. Sem uma profunda reforma política, chegaremos lá rapidamente.

Fábio Canton Filho, doutor em direito pela USP, é vice-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo – Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo

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