Lúcifer está entre nós, mas calma, ele é do Bem

Lançado com sucesso imediato no canal Netflix, série mistura estilo pop de roteirista de Californication com história vinda do grupo DC Comics e ainda causa polêmica

 

Henrique Morgantini

 

O diabo, o coisa-ruim, o sete-peles, o pé-preto, o tinhoso. Enfim, seja qual for o nome que você quiser dar, o diabo se cansou de reinar no inferno e resolveu tirar férias. E onde alguém como o anjo Lúcifer poderia passear sem se sentir entediado? Claro que na Cidade dos Anjos. Este é o mote principal da série Lúcifer, que está disponível na Netflix e vem gerando milhões de acessos e polêmicas: o diabo se instala em Los Angeles em busca de diversões junto aos humanos.

A notícia boa é que o diabo é do bem. Isto mesmo. Em sua tentativa de encontrar uma identidade que o aproxime dos humanos – e os faça compreendê-los – Lúcifer Morningstar passa a perseguir bandidos, assassinos em sua maioria. É na compreensão de vítimas e algozes que ele tentar encontrar respostas para si mesmo. O resultado é interessantíssimo: o diabo é o que há de mais humano em nós.

A série, desde o seu lançamento pela emissora americana Fox, vem causando polêmicas. A mais branda delas é, claro, a religiosa. Segmentos cristãos organizaram boicotes e tentativas de barrar o programa por ele ser estrelado pelo tal filho rebelde de Deus. A tentativa, é claro, não rendeu nada além de um vexame. E o público, movido pela curiosidade, descobriu que a alegoria do Diabo presente na trama nada mais é do que um convite à reflexão sobre o que somos e como nos comportamos. Não há uma idolatria ou mesmo uma defesa de que o Mal deva prevalecer sobre o Bem. E é o próprio protagonista quem lança de cara esta lição.

Escrita pelo roteirista Tom Kapinos, responsável pelo enorme sucesso de Californication, que rendeu sete temporadas, a série é superficialmente baseada em outra história, vinda dos quadrinhos. Lúcifer é um personagem que depois ganhou seu espaço próprio dentro do mundo da DC Comics, através da série Sandman.

E é nesta mistura que, também, há outro debate. Como em tempos de internet, mais do que curtir, o importante é “problematizar”, lá veio outra confusão: os fãs da série de quadrinhos – quase sempre muito devotos – rechaçaram a abordagem de Kapinos e da Fox, já que esperavam algo mais denso e fiel ao tema de Sandman. Já quem não tem qualquer ligação com esta origem do roteiro aprova a diversão da série que conta com o galã Tom Ellis no papel de um sedutor diabo.

A relação de intenso amor e – aí sim – idolatria do roteirista com Los Angeles acaba por contaminar toda a série que é permeada de grandes tomadas de locais turísticos e nem tanto, mais ligados à cultura local, da cidade. A história mostra a associação do empresário da noite e mega bom vivant Lúcifer com uma investigadora da divisão de homicídios. Juntos, eles começam a desvendar crimes cujos detalhes ajudam também a revelar a alma humana, tema de tanto interesse do protagonista.

Um dos mecanismos para traduzir este comportamento ao público e ao próprio ‘capeta do Bem’ é o uso da psicanálise. Por acidente, Lúcifer conhece uma terapeuta que começa a atendê-lo, julgando que o fato de o paciente afirmar ser o Diabo (algo que ele não esconde, mas ninguém acredita) e ter “problemas com seu pai”, no caso Deus, não passa de uma alegoria para que o paciente revele seus anseios mais íntimos. Acontece que, ao fazê-lo, ele compartilha com o espectador traumas e dúvidas comuns de cada um. O Diabo acaba por ser o que há demais humano em nós.

Em meio a toda esta trama, Lúcifer ainda precisa se livrar da pressão celestial do anjo Amenadiel, seu irmão da Luz que também volta a habitar a Terra, mas com uma missão bem diferente: convencer Lúcifer a cumprir a sua missão concedida pelo pai de ambos – isso, Ele mesmo – que é a de voltar ao Inferno e por lá ficar, como é a Sua vontade.

Lúcifer diverte ainda que fique repetitivo a partir de cada capítulo. Talvez peque pelo excesso de bondade do Anjo Caído, que muitas vezes é mais bonzinho que a maioria dos humanos, mas certamente o ponto alto que fica por trás de todas as performances de uma série cômica-policial é o fato de que observar o diabo observando os humanos possa nos revelar muito mais sobre nós mesmos que qualquer outro ser deste ou de outro plano.

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