Mães temem que falta de programas de inclusão atrapalhe o futuro de crianças

A chamada “rede de proteção social” ganha furos preocupantes com a extinção de unidades e a diminuição drástica de programas inclusivos no esporte e na cultura: crianças ganham as ruas no contraturno da escola e pais revelam insegurança com futuro

Paulo Roberto Belém

A trabalhadora rural Kely Dias Barbosa mora no setor Industrial Munir Calixto e, como toda mãe, teme que os seus filhos tomem caminhos errados na vida. A equação é simples: muito tempo ocioso, a ausência dos pais que precisam trabalhar e a oferta das ruas com todas as suas tentações e “chamamentos” para um mundo bem conhecido: o do crime.

A Família Dias: Kely, com os filhos Caian, Wesley e Pedro na porta de onde funcionava o Peti no Setor Industrial: crianças sentem falta do desenho, das brincadeiras e do futebol

Para Kelly, a preocupação é triplicada e tem nome: Wesley Felipe, Pedro Henrique e Caian Lucas que têm, respectivamente, 9, 11 e 14 anos. Eles estão matriculados e frequentam regularmente a escola, mas tem algo que está fazendo falta, relata a trabalhadora rural: algo para os seus filhos fazerem no contraturno da escola. “Nos dias de hoje, é difícil as crianças ficarem ociosas com a violência que está aí”, desabafa.

Ela conta que se sente frustrada porque os seus três filhos frequentavam o núcleo do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos do setor, programa que dá nova nomenclatura a alguns programas de proteção social, a exemplo do antigo “Peti” – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Entretanto, os jovens estão desligados da unidade porque ela foi desativada pela Prefeitura. “Até o ano passado, eu podia trabalhar tranquila, porque quando eles não estavam na escola, estavam no “Peti”. Agora, fico com eles em casa”, lamenta.

Falta

Os três relatam que estão sentindo falta do espaço de inclusão no setor onde podiam desenvolver atividades de acordo com o gosto de cada um. Wesley Felipe revelou que sente falta de brincar com marionetes. Para Pedro Henrique, o que ele sente saudade são as aulas de desenho. Já Caian Lucas, o mais velho, é o futebol.

A Família Dias: Kely, com os filhos Caian, Wesley e Pedro na porta de onde funcionava o Peti no Setor Industrial: crianças sentem falta do desenho, das brincadeiras e do futebol

O mais velho assume o papel de porta voz e diz que a opção que lhe foi dada, aos irmãos e às outras crianças, foi a possibilidade de frequentar o núcleo do “Peti” da Vila Formosa, mas que, segundo ele, é uma tarefa muito cansativa. “A gente tem que chegar correndo da escola e enfrentar um tempão no ônibus entre ida e vinda”, conta.

Mas nem se eles quisessem, a mãe dos garotos permitiria que eles fizessem esse deslocamento, diz a mãe. “É muito longe e eu fico com muito medo”, justifica, lembrando as diversas atividades que eles eram submetidos enquanto o núcleo funcionava bem ao lado da sua casa. “Eles iam para o cinema. Eu não tenho condições de levar eles ao cinema. Eles faziam natação. Então eu acho complicado muito eles não poderem fazer esse tipo de atividade e tantas outras”, lamenta.

Diminuição

A desativação de alguns núcleos do Peti é somente um caso de algumas perdas que crianças e jovens anapolinos têm enfrentado quando se fala em programas de inclusão. Outras atividades consolidadas e que funcionavam na cidade, que foram desativados ou diminuídos pela Prefeitura também estão fazendo falta, a exemplo dos relacionados à cultura e ao esporte.

O programa de iniciação esportiva, inclusive, já foi pauta de reportagem de A Voz de Anápolis à época que foram desativados os convênios do antigo programa “Esporte para Todos”, que agora a Prefeitura diz se chamar “Esporte em Ação”.

A iniciação esportiva é reconhecida como um dos itens de maior poder de inclusão de crianças e jovens e um dos principais fatores que proporcionam a retirada das crianças das ruas no contraturno das escolas. Com a drástica redução ocorrida após a mudança de seu nome para “Esporte em Ação”, escolinhas de esporte deixaram de receber crianças que, agora, estão se envolvendo em outras atividades sem qualquer controle e orientação. O risco é que, algumas delas, possa entrar em contato com influências do mundo do crime e do tráfico de drogas.

Neste cenário, o que mais preocupa é a exposição desses jovens a situações adversas, nas ruas. O mau uso do tempo ocioso pode ser um convite às drogas e à criminalidade. É o que diz a especialista Águeda Maria Zimmer que trabalha na área social há 22 anos. Até o ano passado, e durante oito anos, ela coordenou todos os núcleos do Peti da cidade e conhece bem a realidade do setor Industrial.

“Se não for desenvolvido um trabalho intenso, atrativo, dinâmico, que conquiste estas crianças, a gente as perde para a droga”, destaca a ex-gestora do Peti, Águeda Zimmer, com 22 anos de experiência

Zimmer cita que o mesmo ocorreu nos núcleos do Summerville e do Santos Dumont. “À época, quando chegamos lá, a população não tinha nenhum instrumento de inclusão. Daí inserimos o Peti com várias atividades, incluindo esporte e cultura. É um retrocesso aquela unidade ter sido desativada”, relatou.

Experiência

Zimmer conta a experiência de que para a manutenção do núcleo na região foi preciso o município adotar providências para retirar um “pit-dog” da porta do local à época. “Tínhamos experiência de jovens serem abordados no deslocamento para o “Peti” nesse “pit-dog” por drogados. Ou seja, se num local que já é atendido por uma ferramenta desta pode acontecer isso, imagina quando não se tem nada”, questionou.

É por isso que a especialista pondera. “Se nessas regiões, bem como em toda a cidade, não for desenvolvido um trabalho intenso, atrativo, dinâmico, que conquiste estas crianças e jovens, que façam elas gostarem de participar, a gente as perde para a droga”, analisa e complementa: “e se nós a perdemos, o que acontece com a sociedade? Aumenta a violência, a criminalidade”, finaliza.

 

 

Secretária justifica a desativação de núcleos por depredação de imóvel

A secretária municipal de Desenvolvimento Social, Nair de Moura Vieira, justificou que a desativação do núcleo do “Peti” do Industrial foi motivada por conta de uma depredação do prédio, entretanto, A Voz de Anápolis apurou que a depredação realizada ocorreu após a desativação do espaço.

Nair Vieira, à frente do Social da Prefeitura: previsão para reforma de imóvel depende de conclusão de processo de compra de material

Inclusive, a denúncia já foi tema de reportagem à época. Por outro lado, ela disse que fez a promessa aos moradores da região para a reativação do espaço. “Nós vamos voltar as crianças para o local delas, assim como também no Summerville”, afirmou.

Segundo ela, a atenção aos jovens das regiões que foram desativados os núcleos está sendo suprida por transporte de região para região, conforme foi relatado e criticado pelos jovens e pela trabalhadora rural mencionados na reportagem. Sobre o prazo para reativação, a secretária alega depender da compra dos materiais para a reforma. “Nós estamos dentro do processo, então, acredito que em agosto eles possam voltar a funcionar normalmente”, disse.

Solução

Enquanto o retorno destes núcleos fica na promessa, a dona de casa Raquel Barreto fica na expectativa. Ela conta que têm quatro filhos que frequentavam o núcleo do Industrial e que a desativação foi um dos motivos que a fez se mudar para a cidade de Niquelândia, no norte do estado. Agora, de volta à cidade, ela aguarda o retorno da família e se preocupa com a falta do espaço. “Eles estão para chegar e eu quero muito que os quatro continuem no “Peti” aqui na região”, espera.

Raquel Barreto afirma que o fim do PETI foi uma das razões que a levaram a se mudar para Niquelândia: instabilidade social

A expectativa é compartilhada por Águeda Zimmer. “Tudo o que foi perdido tem que ser retomado porque quando se exclui programas sociais dos lugares periféricos, é mais complicado porque é mais distante, geralmente são regiões maiores e que quando ficam desassistidas, fica mais difícil trabalhar com essas famílias”, finalizou.

O que é o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos

É o que promove a inclusão social para crianças e jovens com idade inferior a 16 anos. Nos núcleos do SCFV são desenvolvidas uma série de atividades para as crianças e jovens pautadas em onze situações prioritárias de atendimento, tais como: situações de isolamento; negligência ou vivência de violência doméstica; trabalho infantil; evasão escolar ou defasagem escolar acima de  dois anos, violência sexual; acolhimento; cumprimento de medida sócio educativa; egressos de medidas sócio educativas; medidas de proteção social e atendimento a portadores de deficiências.

Números

Núcleos do “Peti” em 2016 – 18

Atendimento – Mais de 3 mil crianças e jovens

 

Núcleos do “Peti” em 2017 – 15

Atendimento – Cerca de 2 mil

 

Outras Áreas

Núcleos de Esporte em 2016 – 50

Atendimento – Mais de 10 mil

 

Núcleos de Esporte em 2017 – Não informado*

Atendimento – Não informado*

 

Núcleos de Cultura em 2016 – 12

Atendimento – 3 mil

 

Núcleos de Cultura em 2017 – Não informado*

Atendimento – Não informado*

 

*Não informado – A Voz de Anápolis entrou em contato com o secretário de Cultura, Erivelson Borges e com a Assessoria de Comunicação da Prefeitura e pediu as informações pertinentes à reportagem, entretanto, até o fechamento da edição, não obteve resposta

 

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