Segurança Pública anapolina: um tripé perto de desmoronar

Queda vertiginosa de investimentos em proteção social – com direito a câmeras de vídeo-monitoramento desligadas, falta de policiamento proporcional à cidade e ameaça da regionalização do presídio são três pontos fundamentais que colocam em risco a vida cotidiana da cidade

Henrique Morgantini

Paulo Roberto Belém

 A tragédia é sempre o resultado de um conjunto de falhas.

São omissões, irresponsabilidades, falta de priorização de ações em detrimento a outras. Enfim, em um cenário coletivo como o da Segurança Pública de Anápolis, a desconstrução de um clima de controle social e de sensação de segurança vem depois que diversos erros foram cometidos. E, neste caso, a formação de um tripé que garanta conforto aos cidadãos, quando é quebrado em uma das partes, fica capenga e tende a ruir.

Agora, imagine se os três pontos-base de apoio cedem: a tendência é que tudo desmorone ainda mais rapidamente.

Em se tratando de Segurança Pública, este tripé é composto pela construção de uma rede de proteção social inclusiva – priorizando as crianças – a destinação de um policiamento proporcional à cidade para as ruas e, por fim, a garantia da Paz Social, por intermédio de ações que diminuam as tensões entre gangues e segmentos do crime organizado.

Para isto ocorrer, a presença do Estado – que é o responsável legal por garantir Segurança Pública nas cidades – é fundamental. No entanto, a participação das forças locais dos municípios é decisiva na garantia de ações preventivas. Não é difícil imaginar um exemplo: os programas sociais são voltados para que crianças e adolescentes ocupem o tempo livre e, como consequência, eles impedem que estes grupos sejam cooptados pelo mundo do crime. Uma criança a mais em um programa de iniciação esportiva do município, como o extinto “Esporte Para Todos”, significa uma criança a menos sendo aliciada para fazer a chamada “mula”, ou seja, levar drogas a serviço do tráfico.

Falha

E é neste ponto que começa a ruir um programa preventivo de Segurança Pública. O adolescente-infrator de hoje é traficante, o bandido, o preso de amanhã. A saída é impedir que ele se torne o que potencialmente pode vir a ser se ficar à mercê do crime nas ruas. Isto porque desde 2017 os anapolinos estão tendo que conviver com a redução de programas sociais voltados para inclusão social das famílias e de crianças e jovens mais carentes. Alguns deles foram extintos.

Só o programa Bolsa Família atendia, até 2016, 15 mil famílias de forma contínua. Atualmente, 10,5 mil estão recebendo o benefício do Governo Federal que é administrado pela Prefeitura. Uma perda de 4,5 mil benefícios, ou 30% do atendimento.

Quando o assunto é especificamente uma política voltada para as crianças, o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) é um perfeito e triste exemplo. O Peti recebeu outro nome – agora se chama “Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo” – mas mantém a mesma finalidade: ocupar com qualidade o tempo das crianças para que não sejam usadas no trabalho infantil. E, principalmente, no trabalho para o crime organizado.

Situação do Peti da Matinha: diminuição de núcleos obrigou crianças a se deslocar a outras regiões ou deixar de frequentar programa

Em Anápolis, somente no ano passado, o serviço de proteção à criança perdeu três núcleos. Com isto, as crianças que eram assistidas pelos núcleos do Industrial, Santos Dumont e Summerville tiveram duas opções: teriam que se deslocar para núcleos de outros bairros ou ficariam simplesmente desassistidos. Ocorre que nem todos os jovens optaram pela primeira opção e a realidade é que, atualmente, pouco mais de 1,1 mil estão frequentando os atuais 15 núcleos do programa. Quando o Peti tinha 18 núcleos, cerca de 3 mil era a frequência cativa.

A Prefeitura promete voltar com os núcleos dos setores Industrial e Summerville. Inclusive, obras de reforma foram executadas nestes espaços para tal, mas, até agora, nada efetivo, ou seja, crianças e jovens continuam desassistidos.

Futuro

Em uma faixa etária mais elevada, programas sociais que garantiam a ocupação de jovens da cidade foram igualmente suprimidos. O “Cidadão do Futuro”, que cuida da inclusão de jovens no mercado de trabalho, também sofreu perdas.

Em seu auge, o Cidadão do Futuro conseguia atender, simultaneamente, 250 jovens. Atualmente, 187 são os participantes. A Prefeitura justifica que a diferença corresponde aos jovens egressos da última formatura e que está captando novas inscrições para completar o quadro de vagas do programa, mas ainda não houve esse preenchimento.

Esporte

Outra atividade consolidada e que funcionava na cidade era o Esporte Para Todos. Além de abranger uma faixa etária maior, de crianças a jovens, o programa tinha, por trás da premissa da iniciação esportiva e do investimento em Saúde, outra importante função: evitar o período ocioso e o aliciamento ao crime.

E é deste segmento de atendimento social que vem a pior notícia: o programa simplesmente acabou na cidade de Anápolis desde a chegada da Gestão Roberto Naves. Sob o nome de “Esporte em Ação”, a gestão municipal cancelou os convênios com diversas academias e escolinhas que recebiam as crianças. Sem dinheiro, as crianças foram desligadas do Esporte e as unidades não puderam receber alunos sem a Prefeitura para bancar os custos.

O Esporte Para Todos, que chegou a ter 16 mil crianças atendidas, hoje, está extinto

Anápolis, em seu auge, chegou a atender 16 mil crianças no programa. “As crianças estão, literalmente, jogadas nas ruas”, disse um dos donos destas escolinhas, ouvidos pela reportagem de A Voz de Anápolis, quando da realização de uma edição especial sobre o tema.

E estar jogado nas ruas significa estar à margem de uma proposta para o crime, para o tráfico, para o aliciamento.

Com câmeras desligadas e falta de policiamento, violência se torna cotidiana

Outra base deste tripé é também ligada à prevenção. Além do social, que cuida das crianças antes delas se tornarem alvos do aliciamento, a prevenção ao crime é peça-chave para que se eleve na cidade a sensação de segurança. E neste ponto novamente a gestão municipal pode ser parceira do Estado na busca pela Paz Social. E, da mesma forma, quando ambos falham, o caos é iminente e preocupa a todos os anapolinos.

Uma das 68 câmeras do centro de Anápolis: serviço desabilitado porque gestão cortou investimento

Um dos principais resultados da implantação do Gabinete de Gestão Integrada Municipal – GGIM – em 2011 foi a chegada das tecnologias que serviram para ajudar na segurança pública da cidade. Sem dúvida, o sistema de vídeo-monitoramento foi a ferramenta acertada, apresentando redução de até 65% das ocorrências em três meses de funcionamento. As câmeras aumentaram a vigilância e a sensação de segurança, causando inibição da ação criminosa em diversos pontos de maior movimento.

Até então, tudo bem. Acontece que nesta semana os anapolinos foram surpreendidos com a notícia de que as câmeras estão desligadas. Isto porque a gestão municipal deve à empresa responsável pelo fornecimento de fibra ótica, que faz a comunicação, o valor acumulado de R$ 879.827,30.

Informações do Portal Transparência mostra a dívida acumulada em mais de R$ 800 mil com a Claro: economia que gera insegurança

Questionada, a Prefeitura chegou a informar que haveria um problema por parte da empresa que viabiliza o funcionamento do sistema, por não dar manutenção na rede. Por nota, a empresa Claro desmentiu a Prefeitura. A empresa não comenta contratos específicos de clientes ou situações de inadimplência, mas garante que sua rede na cidade está em pleno funcionamento. “Nossa rede opera normalmente e realizamos regularmente a manutenção de nossa rede de fibra óptica na cidade”, disse na nota.

Já o assessor do Observatório de Segurança Glayson Reis disse à reportagem que nem todas as câmeras estariam desligadas. “Algumas, sim, outras, não”, disse, sem mencionar quais. Ele sustenta que está em processo de troca o sistema que opera as câmeras. “Estamos trocando para um sistema mais moderno, porque nós teremos agora um que fará reconhecimento facial e leitura de placas”, garante. O prefeito Roberto Naves, durante prestação de contas na Câmara Municipal, apareceu com uma terceira versão: o sistema tem mais de 10 anos e está defasado. Só que as câmeras só foram instaladas há sete, em 2011.

Nas praças, tráfico de drogas e roubos são parte da paisagem

WP pediu para não ser identificado. Ele conhece bem o dia a dia da Praça Americano do Brasil e dispara. “Aqui só tem droga e bandido. Tudo que existir de ruim, essa praça tem”, conta. O trabalhador disse que os roubos de celulares são frequentes por conta da grande movimentação de pessoas. “Não foi uma, nem duas, nem três vezes que vi pessoas sendo roubadas. Do nada, você só escuta o grito”, relata.

Do outro lado da Praça Americano do Brasil, outro trabalhador também conhece a realidade do local, o taxista Libertino Ferreira da Cunha. Trabalhando no local há 36 anos, ele é mais comedido e diz que já observou algumas situações de insegurança. “A gente tem que entregar a vida da gente para Deus”, sugere.

O taxista Libertino da Cunha diz que entrega a vida à Deus e lembra da da promessa da Guarda Municipal: “ia ajudar”

Libertino acredita na polícia que, segundo ele, tem dado uma resposta. “Direto eles passam aqui. Eles chegam junto”, afirma. O taxista também entende no reforço da segurança da praça se a Guarda Municipal fosse efetivada. “Se essa Guarda contribuísse com auxílio à Polícia, com certeza seria interessante para a segurança daqui”, observa.

Bom Jesus

Dono de uma banca de jornais e revistas na Praça Bom Jesus, o comerciante Márcio Damasceno recorda do tempo em que observava a presença de vigilantes na praça bancados pela Prefeitura. “Havia vigilância 24 horas aqui na praça o que a tornou um local visitado pela população. Agora, sem essa mesma vigilância, aqui fica cheio de pessoas mal intencionadas”, avalia.

O comerciante diz que os pequenos furtos ocorrem com frequência na praça. “Eu mesmo já tive a minha banca assaltada. Fora isso, as abordagens a idosos nessa praça é rotineira. Sem contar os roubos que acontecem nesses pontos de ônibus. Posso dizer que aqui atua até quadrilha especializada em roubo a pessoas nos pontos de ônibus”, conta. Damasceno até indica os dias e horários mais críticos. “Sempre depois que os bancos abrem e mais ali para o fim/início de mês, quando o dinheiro circula”, cita. E complementa. “Guarda Municipal ajudaria. Tão claro como calor no fogo”.

O comerciante Márcio Damasceno lembra quando a Bom Jesus tinha vigilância 24 horas: agora, idosos são presa fácil a qualquer hora

Personagem presente também na Praça Bom Jesus, a trabalhadora Maria Pimentel disse que passa pelo local, pelo menos, uma vez ao dia. Ela diz que para evitar o pior, é cuidadosa. “Pelo fato de ter muitas pessoas diferentes aqui, que você não conhece, acho esse local inseguro. Tinha que haver abordagens”, entende. Pimentel conta como se comporta na praça para não ser roubada. “Mexer no celular? Só se for escondido. Nunca à mostra”, explica.

Duas referências históricas da cidade, praças Americano do Brasil e Bom Jesus tem alto movimento e pouca vigilância: trabalhadores revelam tensão ao atravessar área

Presídio: solução que ameaça virar mais um problema

Para completar o tripé da Segurança Pública de Anápolis, a superlotação da cadeia pública municipal é um problema antigo. Com capacidade para 280 pessoas, hoje recebe em torno de 800 presos, sejam em situação provisória, sejam condenados cumprindo pena. O fato é que a cadeia passou por diversas intervenções, os chamados ‘puxadinhos’, para poder quebrar o galho da segurança pública.

Unidade superlotada na região do Recanto do Sol ainda é uma bomba relógio com cerca de 800 presos em um lugar que cabem 280

Só que não dá mais para, literalmente, segurar a situação. As fugas são recorrentes, os princípios de conflitos e a tensão é grande até mesmo para os agentes carcerários. Em 10 dias neste mês de fevereiro houve a fuga de 10 detentos e a explosão de bombas que acordaram moradores da região do Recanto do Sol, gerando medo e insegurança.

Prevendo esta situação, ainda em 2009, a gestão municipal, à época sob o comando do então prefeito Antônio Gomide, pleiteou a construção de um presídio que atendesse à demanda da cadeia, ou seja, que pudesse tirar os presos excedentes de lá para um novo complexo prisional, já mais adequado.

A condição do Governo de Goiás foi a de que a cidade encontrasse uma área para a construção – que seria bancada em 90% com verba federal e o restante com a contrapartida do Estado. E assim foi feito: Anápolis foi a única cidade de Goiás que adquiriu uma área, pagou por ela e fez a doação formal para que o Estado resolvesse o problema, construindo o presídio.

O presídio tinha previsão de ser entregue em 2014. Mas a obra só foi inaugurada na semana passada, com quatro anos de atraso e 47% de aditivos no seu custo. Saiu de R$ 12 milhões para R$ 19 milhões.

Mas o pior ainda está sob o risco de acontecer: uma lei aprovada pela Assembleia Legislativa prevê que os novos presídios a serem inaugurados sejam regionalizados, ou seja, possam receber presos de todo o Estado. Com isto, aquela luta para conseguir um presídio que pudesse diminuir a superlotação da cadeia municipal pode ir por água abaixo. A cidade pode continuar com a bomba-relógio do Recanto do Sol e, ainda, ter de receber presos de alta periculosidade vindos, por exemplo, do complexo Odenir Guimarães, em Aparecida de Goiânia.

Inaugurado no último dia 16, unidade que o estado quer que seja regional, ainda não foi ocupada

A luta, agora, passa a ser política. A Câmara Municipal e segmentos que cuidam da população carcerária atuam para reunir forças políticas da cidade a fim de pressionar a Secretaria de Segurança Pública e o Governo de Goiás a barrar a regionalização da unidade anapolina. Leia mais sobre este assunto na reportagem da página 08 desta edição.

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