Um tiro de 38 ou balinhas?

Felipe Homsi

Meu avô costumava guardar um pote de balas dentro de casa. Era cheio de balas, sim, mas acima de tudo guardava em seu interior uma ternura, uma singeleza e um trato para com as pessoas, qualidades que não se acha mais por aí. E naquele pote tinha de sobra estas virtudes. “Quem quer balinha?”, o jido gritava. Jido, para quem não sabe, é avô em árabe. Sou de família libanesa.

Atenção, leitor. Enquanto você lê este artigo, acabam de matar a tiros de 38 seu vizinho. A mãe dele teve tempo somente de correr para a cena do crime e abraçar o defunto daquele que ela gerou e viu crescer com tanto amor e carinho, coisas que o pote de balas oferecia livremente. De repente a vida muda de figura e a balinha doce, colorida e macia do jido é substituída por uma bala prateada, brilhante e amarga de digerir. O pote de balas, com todas as suas qualidades, não perdeu sua essência com a morte do seu vizinho, mas ficou um pouco arranhado, sem função, jogado num canto qualquer. O pote, leitor, se entristece porque tem gente preferindo bala de prata à doçura dos doces que meu avô podia oferecer.

O limite entre a bala doce e a bala prateada 38 está no jeito com que uma ou outra chega ao destinatário. A primeira vem suave, gentil, das mãos de um bom velhinho. Ou se pode comprá-la na mercearia mais próxima. A segunda bala não desce suave. No lugar daquele gostinho de ‘quero mais’ que a balinha deixa, a 38 apresenta o cenário sanguinário e desolador e vem com sabor de fel, com um rastro de morte ficando para trás. E os traços não ficam somente para trás, esquecidos. Cada morte com bala de revólver compromete a vida e a história de toda uma geração, um bairro, uma cidade e até mesmo uma nação inteira. É como se a pólvora se multiplicasse, explodindo a cada esquina.

Hoje é dia de você passear no shopping com a família. Vocês vão ao restaurante, todos se fartam, as crianças pedem para ir aos brinquedos, você deixa. Depois de brincarem, o que elas querem? Balinhas, claro. E elas se empanturram, comem mais doces do que deveriam no quiosque mais próximo. Mas qual é o problema? O que tem demais em sermos felizes com as pessoas que amamos e desfrutarmos daquilo que de mais apetitoso é oferecido pelo comércio local? Afinal de contas, o pote de balas está aí para isso, para nos dar momentos de prazer.

Por trás, alguém encosta um objeto nas suas costas. Você pensa que um de seus filhos está te chamando, vira e se depara com um assaltante. “Passa o dinheiro, relógios, joias, bolsa”, são as palavras de ordem. Você entrega tudo, confiante de que era somente um roubo, o chamado “assalto à mão armada”. Mas o ladrão se assusta quando você coloca a mão no bolso para pegar o resto de dinheiro que tinha para entregar a ele. E os tiros começam, não em você, mas as rajadas se iniciam em seus filhos, um rapaz e uma menina de sete e nove anos. E depois é a vez da sua esposa tomar um tiro de cheio no coração. Um dos tiros de .38 pega de raspão no seu braço. O assaltante ainda rouba as balinhas que as crianças tanto amavam e sai correndo. Os corpos, ou pessoas mortas, ou chame do que quiser, ficam por lá, expostos a fotos de passantes curiosos e submetidos às imagens da mídia local, que chega na sequência ávida e sedenta por notícias. E o fato, que instantaneamente está nos grupos de Whatsapp, deixa o pote um pouco mais vazio, sujo e desgastado. A graça e felicidade que meu avô via em encher o pote vão embora. O mundo faz isso com a vida. Mas ele ainda é pote e lá dentro tem coisas boas para quem quiser. Só não tem para o ladrão. Ele só quer a balinha e os bens. A tristeza, angustia e revolta pela perda, isso é problema seu. Resolve, irmão.

Incrível como a vida parece curta quando perdemos aquilo que temos de mais precioso. E o pote de balas escancara isso. Juntamos tantas balas, mas tantas balas, que elas começam a sufocar a singeleza e preciosidade do pote. Não sei porque decidi escrever esta mensagem moralista agora. Mas é que ela serve tanto. Pensa se o pai que perdeu os filhos e a esposa tivesse amado sua família um pouco mais, as crianças também. Mas enfim, não é isso que está em discussão. Afinal de contas, o ladrão, homem mau, tirou de você todas as balas, bem antes que você pensasse em dividi-las com sua família. E você não tem tempo nem de se arrepender, apenas de sofrer pela desgraça que chegou sem avisar. Assista ao filme A Cabana. Não me pergunte por que, a última coisa que quero ser é spoiler. Apenas assista.

Dez anos se passam. Você, por obrigação ou força de vontade, segue adiante. É claro que nunca se recuperou do trauma que a perda de seu vizinho e depois, muito mais, a dos filhos causou. Sem propósito, você para em um café para ler o jornal e, claro, chupar algumas balinhas do pote. Afinal de contas, foi perdendo tudo que você passou a dar valor nestes doces preciosos e a apreciar o pote, desgastado, arranhado, surrado. O pote é como você, com uma diferença: o pote, transparente, escancara para o mundo que tem balinhas a oferecer. E você precisa esconder a dor para sobreviver. Você, como eu e todo mundo, é fosco para continuar vivendo. Ser humano é assim.

“Ninguém se move”, chega o assaltante ao café, com palavras de ordem que, dez anos depois, ainda ressoam em seu ouvido. Parece que você não tem sorte com ladrões. Sempre desastrados. Eles começam a atirar, apenas pelo prazer de verem o 38 cantar. E você era o alvo certo, já que estava de bobeira no caminho. Um tiro certeiro e você cai em cima do jornal. Por coincidência, você tomba em cima da notícia sobre o delegado que encontrou os assassinos do seu vizinho.

Na outra página, a notícia de que os homicidas da sua família foram soltos por bom comportamento. Você agoniza sobre as páginas do semanário, seu sangue escorre em cima das folhas já sangrentas. A vida se esvai e você, respirando ainda os últimos sopros, se lembra claramente da sua vida, que passa como um filme. O pote? Ele está ali, bem ao seu lado, respirando com você os respiros derradeiros. Naquele ambiente, somente você se interessaria por ele, afinal, uma parte expressiva do mundo perdeu o brilho e a maioria não quer saber de doce. Neste momento, seus olhos se fecham e as janelas que deixavam passar a luz da vida e te faziam enxergar se trancam para sempre. E a pergunta que fica, leitor, se ainda pode me ouvir, é sobre quem fala mais alto. Um pote de balas ou um tiro de 38?

Felipe Homsi é jornalista e repórter de A Voz de Anápolis

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