Contra a mulher, o silêncio ainda é o maior inimigo da violência doméstica

Quem se livrou do pesadelo de ter que conviver com o agressor diuturnamente orienta mulheres que passam pela mesma situação a procurarem as autoridades já nos primeiros sinais de que o companheiro pode se tornar seu futuro agressor

Felipe Homsi

A morte da professora Maira Vila Nova, ocorrida em um motel da cidade, seguida do suicídio de seu ex-namorado, levanta imediatamente a indagação: quantas mulheres podem estar no mesmo caminho do crime que abalou Anápolis?

O que ocorreu com Maira naquele motel e nos dias que antecederam sua morte retrata uma realidade das mulheres anapolinas que são agredidas. Em 2015, o Centro de Referência da Mulher atendeu a 1.664 mulheres nesta situação. Em 2016, foram 1.749 casos até setembro de 2017, 926 mulheres foram atendidas. Os números brutos podem não dizer muita coisa, mas a realidade muda quando se constata que os casos reais de agressões contra mulheres podem chegar ao dobro do total cadastrados. A Delegacia da Mulher registrou no ano passado aproximadamente 3,2 mil ocorrências diversas de mulheres.

Erondina de Moraes é ex-delegada da mulher e desde 2009 está à frente do Centro de Referência da Mulher. Uma realidade é certa: para se proteger, a mulher deve denunciar seu companheiro agressor e buscar o apoio de seus familiares. Somente assim o pior poderá ser evitado.

Erondina Moraes, do Centro de Referência da Mulher, vê avanços no combate à violência contra a mulher, mas cobra a criação de um juizado específico

O Centro de Referência da Mulher, que dá assistência à vítima, encaminha os casos para as autoridades e ainda oferece a possibilidade para que o agressor possa se tratar, a Lei Maria da Penha tem se mostrado benéfica para quem se sente amordaçada pelo medo. A Patrulha Maria da Penha, que tem o apoio da Polícia Militar, os números 180 e 190, a promoção de eventos como a Conferência da Mulher e uma rede que inclui a manutenção da integridade física e psicológica das vítimas fortaleceram nos últimos anos a luta contra a escalada da violência.

Apesar dos avanços, falta em Anápolis um Juizado Especial de Atendimento à Mulher, que ajudaria a diminuir o nú- mero de casos. A quantidade de processos faz com que judiciá- rio e autoridades policiais nem sempre consigam dar celeridade às investigações e punição aos culpados. “Quando acontece de chamar para uma nova audiência, muitas vezes a mulher já sofreu uma nova ameaça”, elucida Erondina de Moraes.

Silêncio

Quando as vítimas, por pressão, medo ou ameaças, ficam em silêncio e não denunciam seus agressores, o destino fatal como o que teve a professora Maira Vila Nova pode fazer novas vítimas. “Não esteve aqui”, destacou Erondina de Moraes, coordenadora do Centro de Referência da Mulher, informando que Maira jamais procurou o centro para denunciar que estava sofrendo ameaças ou sendo perseguida. “A mulher sofre violência e fica presa no casulo ainda. Ela não denuncia. Ela tem medo de denunciar”, ressalta. Ao fazer a denúncia e representação nas delegacias especializadas, ela pode ter acesso a benefícios como as medidas protetivas, que impedem o agressor de se aproximar dela. Em caso de descumprimento, ele pode ser preso.

Violência

Em todas as classes sociais, a violência contra a mulher é uma realidade. E muitas vezes a única salvação para quem pode morrer a qualquer momento são as autoridades policiais, já que pessoas que estão ao redor muitas vezes não querem se envolver em brigas de casal. A delegada titular da mulher, Marisleide Santos, acredita que ainda prevalece, em muitos casos, a máxima de que “em briga de marido e mulher, não se mete a colher”.

Apesar da difusão desta tradição, parentes e amigos têm que denunciar os casos de violência contra a mulher. Ocultar ou das informações falsas também é crime, conforme apresentou. E a vítima, quando tem a oportunidade e pode fazê-lo, não deve esperar até a próxima agressão para entender que está dormindo com o inimigo. A “escalada da violência” leva a um processo que inclui desentendimentos por questões banais, injúrias, ofensas, ameaças e agressões, podendo envolver o uso de bebidas alcoólicas ou demais entorpecentes por parte do agressor. Não é um processo que começa da noite para o dia. Geralmente, a violência não irrompe “do nada”.

Para Marisleide Santos, delegada da mulher em Anápolis, vítimas de violência devem ficar atentas aos sinais de agressão e denunciar

E nem sempre o agressor possui características de um psicopata ou pessoas transtornada a ponto de matar alguém. O mito do bom marido, bom pai, provedor em casa e amigo de todos pode mascarar uma violência que está a ponto de aflorar. “Ninguém surta para trabalhar, nem para rezar. Só surta para fazer coisa errada”, ressalta a delegada.

Justiça

O grande problema é quando os casos de violência contra a mulher chegam ao judiciário, conforme explicou. “O juiz, se tivesse um pouco menos papel e ver que é uma pessoa embaixo do papel, atenderia melhor. Porque é grave”, ressaltou.

Ela, que atuou por três anos e meio no Grupo de Investigação de Homicídios de Anápolis, já viu de tudo, violências contra a mulher que não poderiam ser escritas em um único livro. Como mulher, ela se sente no lugar de cada vítima, mas sabe que não pode fazer justiça com as próprias mãos. O processo legal deve ser respeitado: “A gente tem que trabalhar dentro da lei”.

Agressão verbal pode ser o indício de algo mais grave

Juliana Albuquerque tem 32 anos e é monitora de vigilância privada. Há quatro anos, ela se separou do seu ex-marido, com o qual foi casada durante oito anos. Quando deu à luz um menino e chegou ao período do “resguardo”, Juliana relata que o ex-marido forçou que ela tivesse relações sexuais com ele, mesmo que ela não quisesse. “Eu fui vítima de um estupro causado pelo meu próprio marido”, explica.

Do estupro resultou uma nova gravidez, e foi aí que “começaram a surgir os primeiros sinais do descontrole dele”, com ingestão de bebidas alcoólicas, xingamentos e traições. As violências verbais também eram incessantes. “Ele dizia ‘você é feia, nenhum homem te quer, você tem que agradecer a Deus por eu querer você’, recorda-se. Para ela, o que era verbalizado “não era um murro, mas doía”. Quando ela começou a cobrar mais respeito, vieram os primeiros empurrões e agressões físicas: “Eu não acreditava que ele tinha feito aquilo”.

Juliana procurou uma delegada. A partir de então, começou o processo de separação e os trâmites judiciais. Quatro anos depois, ele ainda não foi preso. Hoje ela mora em Anápolis e ele no Estado do Mato Grosso. Livre do seu agressor, ela tem uma vida nova: “Não dependo de homem para eu viver”. Ela se sente “mulher novamente”. “A maioria tem salvação. É como se fosse uma doença. Você fica doente, você se trata, você se cura”, explica.

Verbal

M.R., que não terá o nome divulgado para sua proteção, ainda sofre agressões por parte do marido. Ela não quer ter que passar pelo que Juliana passou e por isso procurou a Delegacia da Mulher. Em 2015, seu companheiro já a tinha agredido verbalmente. Foi quando se separaram.

M.R. mostra as marcas recentes das agressões eu sofreu do ex-marido

Em 2016, eles “reataram”, e foi quando as agressões começaram, por questões banais. Quando M.R. falava ao telefone, por exemplo, logo ele iria conferir com quem ela tinha falado. As marcas no corpo ainda podem ser observadas, mas começam a sair. A ferida emocional, entretanto, está longe de passar. Ela ainda convive com o drama de “escolher a pessoa errada”.

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