Arte, resiliência e loucura: um manifesto de amor à Van Gogh

Animação “Loving Vincent” tem lançamento mundial neste mês e se torna uma sensação que impressiona por ter sido gravada com atores e, depois, texturizada no estilo das pinturas do holandês: obra é baseada em cartas e relatos do pintor

Henrique Morgantini

Don McLean entrou para a História da música pela canção “American Pie” que retrata um trágico acidente aéreo que matou Richie Valens, Buddy Holly e Big Bopper. Na música, repetidas vezes McLean diz “o dia em que a música morreu”. O sucesso e o simbolismo da música lhe ofuscaram para a descoberta de outras canções magníficas. Uma delas tem o nome de “Vincent”.

Vincent começa emblematicamente com o nome de uma das mais famosas pinturas de Van Gogh, o Vincent do título: “starry, starry night…”. Em determinado momento, o músico se revela “E agora eu compreendo o que você tentou dizer a mim, como você sofreu pela sua sanidade, como você tentou libertar a todos. Ele não o ouviram, eles não sabiam como, talvez eles o ouçam agora”.

McLean traduziu o silencioso desespero de Van Gogh em sua loucura impulsionada por absinto, chumbo de tinta (que ele passou a ingerir) e recorrentes decepções amorosas. Van Gogh morreu pobre e sem saber que se tornaria um fenômeno na Arte e em seu mercado. O único quadro vendido – não por ele – enquanto estava vivo saiu a 400 francos. Talvez, eles (nós) ouçamos o que Vincent tem a dizer agora, como sugere Don McLean.

E é esta oportunidade que hoje o mundo tem através do filme-animação “Loving Vincent”: ouvir o que Van Gogh tinha e ainda tem a dizer. A obra, cujo lançamento mundial acontece neste mês em mais de 20 países, incluindo o Brasil, é uma produção repleta de curiosidades. Uma delas é o uso de atores e algumas locações reais que, na pós-produção, são submetidas a um processo de texturização para se tornar uma reprodução das pinceladas imortalizadas por Van Gogh.

A co-produção anglo-polonesa tem um custo de 5 milhões de euros e vem se tornando uma sensação por onde já passou na Europa. Com lançamento comercial previsto para este mês, outro ponto da obra é o roteiro. É a primeira produção biográfica sobre o pintor, baseada em seus escritos e em mais de 800 cartas que o pintor trocou com seu irmão Theo, um marchand que passou a vida sustentando o pintor. Vincent o pagava com seu trabalho, até então, um fracasso comercial recorrente.

O filme retrata o último ano de Van Gogh e foi montado em mais de 60 mil pinturas inspiradas no artista. Além disto, 100 pinturas de Van Gogh foram usadas para a montagem direta do roteiro e da fotografia da animação.

Vida e Morte

O trabalho de Van Gohg pode ser resumido na dicotomia da Insistência e do Fracasso. Do início promissor como vendedor de obras de Arte, Vincent logo percebeu que sua vontade era passar para o outro lado e se tornar, ele mesmo, um criador das obras que vendia. Paralelo a isto, decidiu que queria se casar e sofreu a sua primeira decepção amorosa que lhe afligiu profundamente. A partir de então, passou a vagar por diversos países como estudante religioso.

Prestes a se tornar um clérigo, desistiu da missão após um desentendimento com seus superiores e então tornou-se missionário protestante nos confins da Europa, com destaque ao período em que morou numa comunidade carvoeira muito pobre na Bélgica. O local contribuiu para sua desesperança e aumentou sua produção retratando as péssimas condições humanas de todos.

A forma maltrapilha como vivia o fez ser descredenciado da missão cristã que aposta que um homem de Deus precisava andar limpo, bem vestido e apresentando-se elegantemente e não como um pobre qualquer.

Nesta época, muda novamente de vida, vai à Paris e tem contato com grandes nomes em ascensão das Artes. Faz um pacto com seu irmão para ser sustentado em troca de seu trabalho. Theo, igualmente Marchand no mesmo local onde começou a carreira Vincent, topa o acordo e assim o cumpre por toda a vida do primogênito.

Em busca de uma luz de natureza mais próxima ao que via nas obras vindas do Japão, muda-se para Saint-Remy e lá começa seu processo de maior instabilidade: começa a viver de pão e café de manhã e de absinto à noite. A bebida tem alto poder alucinógeno. E, como se este processo não bastasse, envolve-se com sua produção com tamanha proximidade que passa a se alimentar também de tinta de aquarela. Um dos materiais da tinta é o chumbo, com alto poder de envenenamento e de alteração do sistema nervoso.

Van Gogh passa a ter crises e alucinações. Depois de muitas situações e até mesmo de ser internado e ser expulso da casa onde morava pelos vizinhos, Vagh Gogh decide se matar. Ao irmão escreve reconhecendo seu retumbante fracasso e sua fúria em jamais desistir de ser o que era: um pintor. Numa manhã de julho de 1890, Van Gogh vai ao bosque onde costumava ir pintar e dispara contra o próprio peito, mas não morre.

O pintor é encontrado em seu quarto agonizando. Enquanto isto seu irmão é chamado às pressas e ambos têm tempo de conversar durante toda a noite, se despedindo e rememorando todas as frustrações da infância. No dia 29 de julho, enfraquecido pelo ferimento cujo tratamento seria fatal dada a localização da bala, Vincent balbucia ao irmão Theo aquelas que seriam suas últimas palavras: “A tristeza vai durar para sempre”. Van Gogh tinha 37 anos.

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